22/10/2012-Diários literários

Ser Flynn: histórias reais têm mais densidade?

A tentativa de uma escrita experimental pode ser de grande valia para misturar vozes.

A mais valia está na veracidade das experiências vividas, mesmo nos diários literários. Não há dúvidas de que as histórias inventadas tem o seu grande papel. Mas no meu modo de ver, dificilmente a ficção reinventa a fome e a insegurança frente a uma vida miserável. Depois do desamparo sob sucessivas negativas, perdemos o desejo e ganhamos a imobilidade, sem ação. Sem tesão pela existência, nos tornamos incapazes e dependentes. Traumas acumulados acarretados por humilhações de todo tipo levam à brutalidade e, depois, à insanidade. Quando me identifico com a personagem de um filme e acontece de também haver coincidência entre a iconografia do artista de cinema com o protagonista da história, mergulho em suas vidas reais e fictícias.

Esta é a beleza dos diários literários de escritores. Podemos descrever como foi a experiência particular de assistir a um grande filme a sós. Esse texto poderia muito bem ser uma crônica. Em casos assim, sofro uma catarse na qual troco meu tempo, meu espaço e minha pessoa, para viver o papel do protagonista. Neste caso, a vida de um pai miserável, como outros espectadores alienados, contra os quais os teóricos do cinema se alarmariam, condenando indústrias como a hollywoodiana. Mas essa discussão, embora pertinente, não representa embaraço nesta narrativa que hoje apresento, cuja história lembra a de todos os miseráveis sem teto. Esses marginais procuram entender o significado dos seus afastamentos sociais, criando possíveis laços com personagens fantasmáticos ou psicóticos.

Adaptado do livro de Nick Flynn “Another Bullshit Night in Suck City”, o filme “Ser Flynn”, lançado em março deste ano, do diretor Paul Weitz (com Robert de Niro, Julianne Moore e Paul Dano) apresenta um drama familiar contundente. Sem entrar no mérito estético do filme, o tema trata do marginal reconhecido, mas detestado pela família. Menos pelo filho. O desabrigado em tela é um desacreditado escritor alcoólatra que jamais terminou seu romance (que considera um sucesso, mesmo antes do lançamento). Distante da família e preso ao passado, ele não é capaz de se redimir da desilusão do casamento com uma cantora fracassada, também viciada na bebida. Muitas vezes, lanço nestes espaços diários literários, crônicas, experiências com escritores em salas de aula e mesmo, conflitos familiares.

Ao assistir o filme, grudei no protagonista sem teto, como se fosse o meu tio esquizofrênico. Sua relação com a ex-mulher é tão inconsistente quanto aquela que tem com o filho. Amparado pelo sistema social americano – que lhe deu um apartamento para morar -, o sujeito se encrencou com os vizinhos e senhorio, a ponto de ser expulso dali. Isso me grita na alma, porque eu mesmo nunca tive um imóvel, assim como ele, que foi capaz de perder. A última ocupação do sujeito, como taxista, também não seguiu em frente por causa de sua conduta rebelde. Os últimos amigos sem suportar mais suas crises, não se importaram que ele fosse para as ruas. Igual meu tio. Em verdadeiro estado de vigília, quase de sonho, eu durmo então nos bancos das praças, como ele (no filme).

E no filme, esqueço da vida e me despersonalizo. Assim, sou acordado por solavancos provocados por outro sem teto que tenta roubar minha bolsa e sapatos, meus restos mortais. Esquento o corpo junto às grades metálicas de edifícios que exalam gases quentes, do aquecimento, numa cidade gélida e brutal fundada por escravagistas, que recrutam todos os fracos, acabando com todos os sonhos. Tomo notas de tudo o que fará parte de minha grande narrativa best-seller, temendo perder os dedos dos pés quase congelados em sapatos furados. A todo instante vejo outros, como eu, receberem socos e pauladas por vingança em função da defesa de seus territórios, da brutalidade marginal, longe das leis democráticas. Quando experimento sentimentos parecidos, tudo perde o sentido.

Cabe tudo isso em meus diários literários, até o medo de me tornar um indigente, condenado pela família por manter o sonho maluco de insistir em escrever os meus romances. No filme, eu tenho o displante de ser atendido num abrigo pelo meu próprio filho que está no balcão distribuindo roupas, toalhas e sabonete, trabalhando como voluntário. E percebi que se isso acontecesse na minha vida real, morreria de vergonha. Assim nos aproximamos – eu e meu filho virtual no filme -: mas acredito que isso trouxe mais mágoas ainda a nós dois. É isso que dá dizer o que se pensa. Ele passou a vida inteira sendo verdadeiro em sua família, a ponto de sua mulher perceber que nunca o amou. Até que ponto pode se amar um sujeito problemático?

Pelo menos bebemos e conversamos, é o que pensou o pai marginal, depois do encontro com o filho. O pai acha que é um dos três grandes escritores americanos. O filho deseja se tornar escritor e acha que sua mãe morreu depois de ter lido um de seus contos. O pai é o filho e o filho é o pai. Eu (vivendo o pai) disse a ele (vivendo o filho, ao mesmo tempo) que ninguém morre de literatura. As pessoas se suicidam, por outros motivos. As pessoas se matam, filho. Entendo que o pai deixou seu filho pequeno com a mãe e sabe que não terá perdão. Eu fiz muitos erros parecidos, apesar de ter tentado tudo o que podia para evitar desgraças. Pena que o pai não tratou do assunto naquela cena do bar, no filme com seu filho. Tem gente que acha que dramas pessoais não devem constar nos diários literários.

Eu fiz isso na vida real, já pedi desculpas e não foi nada agradável. E de nada adiantou pedir desculpas ao filho nem a mim mesmo, pois os pedidos de socorro continuam latentes na minha cabeça. O pior é que segundas chances não existem. Como poderia abrigar uma alma sem “Um teto todo meu”, como já reclamava Virginia Woolf? ( Mrs. Dalloway ) Sem dinheiro não valho nada para ninguém. E pensar que este pai marginal, protagonista do filme e do livro, tinha aposentadoria e residência garantida pelo governo americano. Mas perdeu tudo. E perdeu, porque era doente. Sabe, há experiências que somente podem ser entendidas, se vividas de fato. Como descrever a sensação da água gelada ou da fome? Quem nunca vomitou de fome, não sabe o que é isso.

Ficção experimental nos diários literários

Knut Hamsun, escritor Nobel foi quem melhor descreveu o que é passar fome, justamente em seu romance, “Fome”. Não há palavras que possam transmitir algumas experiências, talvez uma prosa poética. Não há cenas ou interpretações que possam refletir certos dramas, talvez a poesia. Não há performances que possam servir de catarses diante de algo que somente pode ser vivido, talvez uma terapia de grupo, quem sabe o teatro. Mas eu insisto em encontrar uma saída: quem sabe um ensaio ou uma prosa experimental? Talvez a amálgama das vozes de dois personagens, tal como uma mistura das vozes do pai e do filho, possam dar conta dessa experiência mútuamente conflituosa. Pois é isso: diários literários se prestam maravilhosamente bem para registrar experimentos e ensaios.

Assim, segue lá, a tentativa esquizofrênica de unir as duas vozes principais desse filme, como se fosse mais do que um discurso indireto livre. A América produziu três grandes escritores clássicos: Mark Twain, J.D. Salinger e eu. Logo serei conhecido no país inteiro. Mas eu afirmo que se desejo ser um escritor, não quero viver como você, que é apenas um pobre velho iludido e doente. Mas sou mesmo doente pela literatura, exatamente como você também será, um dos grandes escritores americanos. Mas isso é justamente o que não importa, se perder contato com minha família. Acho que minha mãe morreu depois de ter lido um de meus contos. Se o pai é o filho e o filho tem de ser o pai, rejeito esa missão. E garanto que ninguém morre por ler uma história: você não envenenou sua mãe.

As pessoas se suicidam, porque não gostam de si mesmas. As pessoas se odeiam, filho. Mas você jamais deixará seu filho com a mãe, pois sabe que não terá perdão. Eu fiz muitos erros parecidos, apesar de ter tentado tudo o que podia para evitar desgraças. Meu pai não foi capaz de contar a sua própria história, mas eu estou contando. Em toda a minha vida meu pai se manifestou pela sua ausência. Ele achava que sua vida era recolher material para os romances. Mas nunca publicou ou concluiu nada, como Tycho Brahe que coletou dados por quarenta anos. Juro que não desejo ser o Kepler (Leis de Kepler) dele que, observando décadas de dados, elaborou as leis das órbitas celestes. E ele não cansava de dizer que a vida era uma obra de arte. Mas para quem?

Créditos:

Being Flynn – Ser Flynn, filme do diretor Paul Weitz, com Robert de Niro, Julianne Moore e Paul Dano.

https://www.adorocinema.com/filmes/filme-180692/

Trecho de “Diários de Altair Marino”, registro diário de 22/10/2012, diário fictício, parte integrante do romance “Desvêlo”, de Fernando Chiavassa.

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