01 de maio de 2019

Eu prefiro não!

Eu me recuso a desejar o que esperam que eu deseje. Da minha sala olho a madrugada pela janela e vejo duas realidades. De um lado, irmanam-se pequenas casas e sobrados iluminados que afastam prédios envidraçados escuros que ignoram uma igreja católica centenária. Este cenário urbano resulta de intenções mercantis que reviram meu estômago. De outro lado, a luz da televisão evidencia meu corpo jogado num sofá de três lugares, com magras almofadas de algodão onde dois travesseiros se apoiam.

Ao ver o interior da sala refletido nos vidros do terraço eu assusto com o rosto de alguém perdido que não atende às expectativas mercantis e imediatas da primeira realidade, pois nada é permanente. Presentes na segunda realidade, refletidos nos vidros como o sofá, a mesa e a televisão, algumas pinturas à lápis de cor e bastões de pastel, atestam minha necessidade de criar outro mundo, com normas e códigos inusitados.

Articulo nesses quadros, composições coloridas com pontos de vistas que incomodam. Então olho para estas duas realidades ao mesmo tempo e a sobreposição das duas imagens mais parece um sonho. A televisão mostra, ainda, uma terceira realidade ou pesadelo. Em determinado momento desloco a atenção de uma destas narrativas que não me prende no momento, para atravessar o terraço e imaginar como poderia mudar a realidade do Largo da Batata.

Acredito seguir caminhos que não consigo explicar e deseje mudanças que só posso intuir. Tenho procurado por saídas, mas me surpreendo ao dizer coisas que não são minhas e que paralisam, impedindo a abertura de horizontes. Mas nem tudo resulta perdido e o que ainda me torna um sujeito desejante vive nestas pinturas, no encontro com meus dois filhos, na relação com minha mulher e na história que escrevo com meus amigos e livros.

Apesar de tudo, estou convencido de que não terei sérias oportunidades na realidade deste mundo mercantil: não quero papeis numa sociedade em que empresas são mães manipuladoras e bancos os nossos pais. Não posso viver onde o salário é nosso deus. Eu me recuso a desejar isso e muito prefiro outras saídas que a arte me aponta. Cagam na minha cabeça por não ter encontrado propostas válidas e coerentes com a vida prática e material. Mercantil.

Então eu sonho, pinto e escrevo. E nunca imaginei ser capaz de dizer tanta coisa através de imagens ou narrativas ao longo de uma linha do tempo que não para de machucar a todos, pois tudo é presente. A realidade mercantil que construiu os espaços urbanos que vejo através do terraço se apoiou em táticas de enriquecimento sem ética, absolutamente imorais. Por isso, ao ver o Largo da Batata e imediações, o meu estômago embrulha.

Dói, mesmo, olhar para tanta sujeira, pois a escravidão ainda vive, o racismo existe, a segregação da mulher continua, a humilhação aos diferentes é mortal e a esperança de tudo isso acabar é praticamente nula. Tenho a minha carne aferrada aos capítulos de uma história demoníaca e só não perdi toda a minha capacidade de desejar, porque nego tudo isso. Mas muita gente deseja apenas o que deseja o sistema que eles desejem e isso é que é vil.

Vivemos manipulados há mais de quinhentos anos por um roteiro ficcional que nos define como cativos amontoados no escuro. Essa realidade mercantil nos limita a um espaço sem ar, onde todos nós permanecemos sem luz, mijando e cagando uns sobre os outros, sem escape, chacoalhando na esperança de não morrer. Atravessamos a existência no subsolo, underground, debaixo de melhores alternativas existenciais.

Atravessamos a existência nos porões de um navio, recebendo pequenas porções de água ou algum alimento (a cada dois ou três dias e nenhum remédio), ansiando pelo sol – que só tomamos uma vez por semana –, para chegar a um porto diante do qual – não sabemos ainda –, jamais sairemos se continuarmos a acreditar nessa história sórdida.

No século passado a elite somente permitiu o aumento do poder aquisitivo das classes mais pobres após catástrofes como a queda da bolsa ou da falta de abastecimento durante e depois das guerras. Esta podridão que está aí, consolidada hoje como elite, nem debaixo de um apocalipse larga do osso.

Considerando um coletivo de esquizofrênicos do qual faço parte, cujos códigos retóricos particulares de sobrevivência não coincidem com o código social – onde a bagagem acumulada cresce num rodízio datado de códigos caóticos –, eu sou um passado presente onde o futuro é um vaso sanitário no meio de um aterro ilegal, santuário de excrescências da aristocracia venenosa.

E diante desse secular desfile de comportamentos anormais, assistimos a consagração de benefícios exclusivos às famílias enriquecidas de um reino que continua aumentando as áreas urbanas com finalidades mercantis, lançando lixo no seio da terra, lotando aterros, construindo em nossas várzeas alagáveis, pavimentando nosso solo e com isso tudo contaminando a terra e o ar. E nossas mentes.

O que seria de mim sem meus loucos amigos, que insistem como eu em continuar girando os códigos e parodiando esse banquete do qual não fazemos parte? São eles que me acalmam ao testemunhar que a angústia de viver persiste, sem que possamos entender como essa gente – religiosa, crente ou pagã, mas renitente classe empresarial endinheirada –, consegue comer, negociar e dormir em cima de tantos cadáveres.

A verdade é que não sou agente, mas paciente, talvez passivo ou nem isso diante desse espaço sem terra, água e sem perspectivas. O cenário na Rua Guaiçuí entre a minha janela e o Largo da Batata ainda é de festa, com luzinhas enfileiradas, em noite marinha de lua. Ali onde a sonoridade prenhe de ébrios é rasgada por gritos e copos quebrados, quase todos os moradores se tornaram insones.

Ninguém aguenta um circo noturno como esse, lotado de quarta a sábado e que só para quando chove. O próprio circo emudece diante de tamanho entulho, de tanta sujeira. E de abandono. Quando o público diminui, às três da manhã, bêbados arremessam palavrões molhados em escarros que mergulham em poças de mijo, sem incomodar quem se esconde debaixo das árvores.

A estupidez comercial etílica abocanha a noite e eu me acabo em filmes, poemas, sonhos e em pinturas. E narrativas. Somente lá pelas quatro ou cinco horas da manhã, quando os sabiás acordam, é que volta a paz.

Enquanto o Largo se acalma com essa orquestra aérea, a cruz azul da torre da igreja se apaga. Contra um céu mais claro, torna-se mais nítida a torre elevada, logo após seus telhados e calhas e depois os contra fortes em arco.

A seguir ganham sombras as alvenarias curvadas e depois ainda, as paredes retas com os vitrais em forma de ogiva. E é assim, só de corpo, que a igreja observa brilhantes poças amarelas, entre as quais foi tecida uma rede de latas e garrafas de cerveja, que serão base de sustento de quem chegar primeiro.

Acabei de abrir a porta de vidro do terraço olhando para o lado nascente, para conferir a altura de Vênus, tarde demais. Com o sol batendo bem forte no meu rosto, impossível ver alguma coisa, já ouvindo os motores dos ônibus que assustam os pássaros.

Não sei como qualificar a imagem desbotada da esfarrapada bandeira nacional que tremula militar, senão imaginando a caricatura do governo que abençoa essa falta de planejamento.

Em seguida escrevi a última frase que acabei colocando também no começo do texto: Eu me recuso a desejar o que esperam que eu deseje.

Créditos

“Diarios de Altair Marino”, é parte integrante do romance “Desvelo”, escrito por Fernando Chiavassa. O tercho apresentado dialoga com um conto do escritor Herman Melville, “Bartleby, O Escrivão”. “Desvelo” é composto por uma trilogia: a primeira parte é formada pelos diários, a segunda, “Caralho” e a terceira, “Alcance” podem ser lidas separadamente como livros de contos. O diário é um livro que deverá ser lançado em seis meses aproximadamentre.

“Bartleby: O Escrivão”, de Herman Melville. O conto descreve a relação singular entre um funcionário de cartório e o seu dono, o escrivão. O cenário, a cidade de Nova York, em meados de 1853. https://www.ubueditora.com.br/bartleby.html

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