Ensaios: Narrativas textuais e imagéticas

Encontre algo sobre a relação existente entre narrativas textuais e imagéticas. Quer saber como a voz narrativa é construída no cinema?

Continue lendo: vale a pena!

A literatura trabalha diretamente com a linguagem escrita e indiretamente com a linguagem oral. Se o texto literário, naturalmente, exercita a reflexão, por outro lado, ele também sugere imagens. Em decorrência, imagens reais complementam a leitura, acrescentando elementos aos cenários e personagens imaginados. Assim, a abstração do texto evoca imagens.

Imagens, como pinturas e fotografias participam da construção de narrativas, ilustrando, confirmando tudo o que texto revela. No entanto, imagens podem narrar por si mesmas, enriquecendo o texto com informações que o texto não registra, mas que o leitor deduz ou infere. Há histórias construídas somente com imagens, de efeitos admiráveis.

O cinema se utiliza de um grande universo de linguagens, dentre elas, a linguagem oral e escrita, as linguagens sonora e musical, os diálogos da dramaturgia, a linguagem das imagens fixas e ainda e principalmente a linguagem das imagens em movimento. Saliente-se que, como as linguagens faladas e escritas, a imagem também trabalha com figuras retóricas.

Em narrativas textuais e imagéticas também vale mostrar e não explicar

O cinema opera com as instâncias narrativas de pessoa, tempo e espaço – no caso de filmes com argumento – trabalhando o discurso para além dos recursos retóricos, excitando não só a mente (sonho), como o corpo (ação). Assim, abusa do ritmo, emprega acelerações, pausas e elipses. Música e silêncios importam, abrindo espaços para contrapontos e repetições.

Metáforas e metonímias, abrem horizontes para mensagens impossíveis de chegar de outra forma, e onde a poesia tateia, a linguagem fílmica avança, semeando campos de significação, a partir dos eixos paradigmáticos e sintagmáticos. É possível traduzir significados oníricos, ou latências inconscientes, com as linguagens existentes?

A semiótica deixa claro que não há uma linguagem cinematográfica, mas muitas linguagens artísticas interligadas e veiculadas através de cada uma das artes, mixadas em quase todos os filmes. O cinema foi buscar recursos argumentativos na narrativa de Charles Dickens, para atribuir maior verossimilhança e muito mais ação em suas histórias.

Com apoio da literatura, o cinema descobriu que era possível contar eventos simultâneos, usando a montagem paralela. E, se o cinema se apropriou das descrições cênicas e paisagens literárias (criando planos gerais), o olhar panorâmico das personagens e os closes nos textos vieram do cinema. A literatura aprendeu com o cinema “how to show and not tell”.

A literatura comparada, contribui para a análise das aproximações que podemos fazer entre narrativas textuais e imagéticas: encontrando afinidades entre imagens e vozes narrativas

Na quarta postagem no meu novo blog, apresentei um ensaio intitulado “Mostra o pau e mata a cobra” em que faço comentários sobre técnicas narrativas textuais. Ali eu indico na prática e com exemplos, como trabalhar o tempo na literatura e como fazer transposições – ou adaptações – de algumas cenas, do conto para o cinema.

Crônicas não podem ser associadas apenas àquele relato cotidiano habitual. Aproveito uma carona na literatura comparada, para comentar a natureza deste relato que apresento agora, nesta sexta postagem, à exemplo da anterior. Rubem Braga, em suas crônicas, relatava em primeira pessoa eventos cotidianos ocorridos no Rio de Janeiro.

Mas crônicas como esta e como a que foi publicada anteriormente, podem ser parecidas com as tradicionais, apenas em parte. Na verdade, eu relato longos passeios feitos, ao longo da minha memória, no meio de bibliotecas. Esse tipo de trabalho textual me lembra de uma obra intitulada “Viajem Através de Meu Quarto”, de Xavier de Maistre.

Jornada Literária

Muito embora esta obra, do autor francês, seja considerada como um ensaio autobiográfico – abordando filosofia e costumes –, ela me reporta ao meu escritório e a minha biblioteca. Em “Mostra o pau e mata a cobra” aproveito para tecer considerações sobre a voz narrativa no texto, mostrando variados narradores. Neste caso, o ensaio se aproxima da obra de Maistre.

Passeando ao longo de estudos artísticos-literários, apresentei naquele ensaio, uma visão panorâmica mostrando os narradores oniscientes tradicionais na terceira pessoa, os clássicos na primeira pessoa e até os narradores testemunhas, que participam da história com seus pontos de vista, iluminando o argumento e enriquecendo a obra literária.

Na última crônica “Fronteiras: cinco transposições” eu relato como foi minha experiência de leitura de textos nos jornais, que falam sobre transposição de uma obra de arte para outra, em geral dentre artes (da poesia clássica para a poesia contemporânea) e do teatro para o cinema. Nesta crônica, eu trato de questões práticas e teóricas sobre texto e imagens.

O espaço e o tempo nas narrativas

O tempo no cinema pode muito bem ser mostrado como na literatura, através da ordem dos acontecimentos, da duração dos conflitos e frequência dos eventos. O ritmo aplicado e as pausas, os sumários e resumos, assim como repetições, induzem a percepção do tempo. As cenas introduzem informações do enredo, das personagens e detêm o avanço da narrativa.

As pausas são inseridas para recuperar memórias, com flashbacks ou antecipar fatos com flashforwards. Importa também o ritmo estabelecido que, junto com o enredo, colabora na construção dos tempos psicológicos. Se o tempo não é algo tão presente materialmente nos fotogramas (exceção a cenas externas), com o espaço é tudo diferente.

O espaço onde corre a ação, confere fortes índices de realidade, possibilitando ao cineasta grandes possibilidades de construção ficcional, espelhando a atmosfera social da história. Os movimentos da câmera que vão do plano geral ao close, sugerem emoções e significados. Os cenários e objetos refletem o interior das personagens e constituem marcas narrativas.

A voz narrativa no cinema

Câmera

Importa elucidar como a voz narrativa é construída no cinema. Ressalte-se que o narrador cinematográfico guarda poucas semelhanças com o narrador literário. Numa narrativa textual identificamos logo que autor e narrador são entidades distintas, mas no cinema isto não pode ser feito tão claramente. Claro que o diretor organiza a composição da narrativa fílmica.

Quando percebemos que o ponto de vista de um filme aponta para uma personagem, tratado como sendo uma visão em primeira ou terceira pessoa, estamos claramente identificando a câmera como narradora. A câmera também opera como narradores oniscientes, mesmo quando o diretor tenta – como Gustave Flaubert – sumir com os vestígios da objetiva.

Interessante tecer aqui um breve comentário a respeito do quanto a instância narrativa – quer no cinema ou na literatura –, tem sido denegada. A enunciação existe apenas entre eu e você ou incluindo o ele (aqui ao nosso lado), e que somos nós. Quem fala sou “eu” ou falamos “nós, aqui, agora”. O ele – distante – não fala, não dá opinião e não julga.

A voz narrativa na terceira pessoa constitui-se num recurso artístico para apagar o narrador, simulando uma história que se conta sozinha. O recurso chega ao limite com a configuração do discurso indireto livre (recurso inventado por Flaubert) quando o narrador assume a voz da personagem, numa fala quase esquizofrênica. Tudo para desaparecer com o narrador.  

Edição e montagem

Todos esses recursos narrativos estão presentes no cinema, trabalhados pelos diretores e suas câmaras (diretor, diretor de arte e diretor de fotografia). Mas enquanto no texto é possível detectar todas as marcas discursivas através dos pronomes, dos dêiticos espaciais (advérbios) e dos temporais (verbos), o cinema emprega múltiplas linguagens e recursos tecnológicos.

Os movimentos e posicionamentos das câmeras, os variados enquadramentos, os olhares das personagens e as conexões entre planos (os raccords), constroem a nossa percepção indicando as vozes narrativas. Mas isso não é tudo. O som e a trilha sonora também narram. E se você imaginou que terminamos a identificação do narrador fílmico por aqui, engano.

Junto com as câmeras, com a iluminação, com o cenário (externo e interno) e com a trilha sonora (sem falar com o som ambiente do cenário natural), configura também como narrador, a montagem. E para finalizar todo o processo, há a edição que organiza esse material cinematográfico, resultando numa complexa organização narrativa, chamada filme.   

Narrativas textuais e imagéticas podem se aproximar ao máximo dentro dos limires de cada uma

Créditos

Xavier de Maistre, Viajem Através de Meu Quarto – Editora 34, 2020 – São Paulo.

https://www.editora34.com.br/detalhe.asp?id=1062

Luís Miguel Cardoso, Literatura e Cinema – Vergílio Ferreira e o Espaço do indizível, Edições 70 Arte e Comunicação, 2016 – Lisboa – Portugal.

https://www.google.com.br/books/edition/Literatura_e_Cinema_Verg%C3%ADlio_Ferreira_e/UW9CDgAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&printsec=frontcover

Fernando Chiavassa, Mostra o pau e mata a cobra, ensaio, Blog – São Paulo

Fernando Chiavassa, Fronteiras: cinco transposições, crônica, Blog – São Paulo

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