Diários Inventados: Homenagem à Luvina

30/06/2012

Resta a Literatura.

Trovejei, chorando sem parar. Virei para baixo, boca aberta. Enfiei a cara nos meus joelhos desde a primeira sílaba, me escondendo da pequena plateia reunida no auditório da Livraria da Vila. João Gilberto Noll, na voz de seu personagem, fez o meu batismo. Noll, meu padrinho. Eu tomei consciência de que eu era aquele sujeito perdido, vagando num além. Marginal. Foi a primeira vez que chorei de verdade. E se meu batismo foi na Balada Literária da Vila, em 2009, eu ainda teria que passar por dezenas de vozes até me encontrar no mundo literário. Naquela manhã, eu não levantei a cabeça até todo o público se retirar.

Não faz muito tempo, fiz uma outra descoberta durante uma palestra na Biblioteca Mário de Andrade, num sábado de manhã. O professor Marcos Natali me abriu portas para reconhecer uma certa magia. “Chão em Chamas” e “Luvinia” me levaram a um mergulho epifânico evidenciando o quanto um escritor consegue aproximar realidade e fantasia e o quando essa conexão é forte para mim. Juan Rulfo escreveu sobre os caminhos de um professor que, de volta à sua cidade natal, viu o fracasso da revolução mexicana. O professor encarava as sombras de seus sonhos, entendendo restar para si apenas a literatura.

O dia em que voce perdeu tudo, e resta somente tua escrita é mortal.

E é bem possivel que você se empenhe para tranformá-la em literatura, seja escrevendo contos, romances ou diários inventados.

Com “Demian” e o “O Lobo da Estepe”, Hesse confirmava minha identificação com todo tipo de outliers. A narrativa curta de Cortázar me encantou, mas o “O Jogo da Amarelinha” me conquistou. E, se eu ganhei profundidade com a leitura de “Grande Sertão: Veredas”, um mundo mágico tão brasileiro, quando descobri “Pedro Páramo”, vi que Rulfo, Cortázar, Onetti, Benedetti e quase todos os latinos faziam parte de minha família literária. No entanto, nunca imaginei que a imersão seria maior ainda quando encontrei o universo da escrita feminina, começando com Marguerite Duras, tão especial quanto Noll.

Então, meu mundo cresceu Caio Fernando Abreu. Explodiu Cecilia Meireles. Complicou Clarice Lispector. Maquinou Carlos Drummond, fingiu pessoa, sabinou e bandeirou. Muita gente me mataria se eu dissesse que hesitei em colocar nessa lista gigantes como Gabriel Garcia Marques e Mário Vargas Llosa, mas não deixaria de fora Adriana Lisboa, Alexandra Lucas Coelho, Beatriz Bracher, Diamela Eltit, Eliane Brum, Hannah Arendt, Igiaba Scego, Judith Butler, Rita Kehl, Marguerite Duras, Silvia Plath, Simone Beauvoir, Susan Sontag, Virginia Woolf, Violette Leduc, Viviane Mosé e muitas, muitas mais, porque meu encontro é com as mulheres.

Nem sei se o maravilhamento que abriu janelas para o estranhamento, não veio primeiro com Marguerite Duras e somente depois com Juan Rulfo, o admirável escritor fotógrafo. “O Amante” é o livro que eu releio sempre, pois reflete a história real da autora e da mãe que escorregaram em todos os segundos de suas vidas, fazendo poesia do desastre em tom imagético, num texto desconstrutor. Chorei muito o desmoronamento da família com a prostituição da garota para dar seu dinheiro em casa, enlouquecendo com a mãe e com seu irmão mais velho. Amo essa menina de dezesseis anos.

“Luvinia”, para mim, é um chamamento. Eterno. As primeiras frases contendo o relato de viajem de um professor mexicano em missão pedagógica, pelo deserto misterioso, me tomam por completo. O cenário estéril e vazio onde o vento protagoniza o espaço é encantatório. É a narrativa de um sujeito misterioso como eu, num lugar que adoraria conhecer, partindo para uma missão educacional; engajado como nunca. Este é o meu encontro entre o divino e o culto, o profano e popular. Peregrino, o protagonista vai de encontro com a morte. Neste trajeto, conhece o preço da ilusão e encara o desencantamento. Para ele, não há mais nada a fazer senão seguir em frente, mesmo sabendo que não há onde chegar.

Em “Luvinia”, duas vozes se misturam. Há a voz do protagonista e uma voz externa que testemunha os fatos. Estas vozes cruzam um espaço de pedras e areia onde tudo parece estéril, diante do vazio e do silêncio, onde o tempo não passa. O vento que também sobe as montanhas é a total ausência de substância, sem origem e sem destino. Ali o vento torna-se personagem, arranhando as paredes do casario e da igreja, que são construções sem teto, sem portas e sem janelas. Em “Luvinia”, conta-se a história da tentativa de encontro do narrador com o leitor, mas que parece não acontecer.

É um relato frustrado a um suposto ouvinte; a narrativa da chegada do professor à Luvinia – quinze anos antes –, narrando seus sonhos pedagógicos financiados por um antigo governo mexicano popular. O professor, está acabado. Trata-se de um governo revolucionário – formado por dissidentes do governo anterior, camponeses e indígenas – que, em 1915, tentou educar o povo. Em vão. O sonho acabou oito anos depois quando Zapata e Pancho Villa morrem. O conto encerra perspectivas de futuro, à medida que aponta um meio rural esquecido, quando o poder volta para as mãos da burguesia que acolhe as injustiças promovidas pelos endinheirados com poder.

Todo escritor que falar de subjugados em espaços inóspitos terá toda a minha atenção. Marginais, humilhados, assujeitados e capachos me farão escrever eternamente. E a escritora que narrar a má sorte daqueles que não tem voz, nem vez, nem aqui, muito menos no estrangeiro, nem mesmo no além, terá toda a minha afeição. Uma das personagens que o professor mexicano encontra, Agripina, sente que não adianta nem rezar mais: não há mais saídas na religião, não há mais revolução. Não se pode esperar mais nada da política, talvez alguma coisa nos romances.

Em “Luvinia”, a narrativa mostra o retorno, apontando fantasmas. Na Comala de “Pedro Páramo”, não há volta possível e Juan Preciado não tem outro remédio senão juntar-se aos mortos. E apesar desta força narrativa da ficção com forte apelo da intriga e do enredo – como desencadeadores da transformação do sujeito -, Machado de Assis, o “Bruxo do Cosme Velho” constrói um dos seus romances mais maduros, mais bem estrutrado, com base na forma de um diário. Não deixe de ler, o quanto um diário de mentira constrói um romance de verdade. Diários Inventados.

Agora não preciso acrescentar mais nada, aqui, senão declarar que resta sublimar, pois se perdi casa e família; se perdi mulher, se perdi a vida como conhecia; ainda não perdi a ilusão: tenho alguns amigos, minha pintura e minha escritura.

O meus diários inventados.

Os diários inventados são uma grande possibilidade ficcional. Muitos escritores brasileiros escreveram diários inventados como Machado de Assis (Memorial de Aires) e Rubem Fonseca (O Fescenino).

Créditos:

Chão em Chamas de Juan Rulfo

https://www.travessa.com.br/chao-em-chamas-1-ed-2021/artigo/507ac5cb-56ae-4b1b-be61-7f1bf721d9fd

Pedro Páramo de Juan Rulfo

https://www.estantevirtual.com.br/livros/juan-rulfo/pedro-paramo/1171798073

Deixe um comentário