Diários em Contos e Romances

26/12/2021

Domingo de madrugada, 05h:05

– “… Flaubert. Blé.” Em seu “Romance Luminoso”, Mário Levrero escreveu, às pgs.78:

“Amigo leitor: não pense em entrelaçar sua vida com literatura. Ou melhor, sim: você sofrerá, mas dará algo de si mesmo, que definitivamente é a única coisa que importa. Não me interesso pelos autores que citam trabalhosamente seus romanções de quatrocentas páginas a partir de fichas e de uma imaginação disciplinada; só transmitem uma informação vazia, triste, deprimente. E mentirosa, sob este disfarce do naturalismo. Como o famoso Flaubert. Blé. Levrero escreveu também, no mesmo romance, às pgs.133, que “estou escrevendo outra vez a mão, testando uma caneta Rotring que Chl me deu de presente”. (Chl é sua namorada).

Isso foi o que li, em meu sofá, onze horas da noite, percebendo que podem coexistir diários em contos e romances. Antes disso, às nove, ao voltar para casa peguei um taxi na Avenida Rebouças no sentido Paulista – Avenida Faria Lima. Olhava pela janela observando de um lado, o Jardim Europa estritamente residencial e do outro lado – o direito –  com o desfile neoliberal especulativo da recente paisagem de Pinheiros, incorporada com edifícios comerciais de grande metragem construída para locação. As janelas dos edifícios vizinhos e residenciais, também enfileirados pareciam emitir um tipo de luz que chamava minha atenção. Senti algo familiar enterrado, mas bem vivo: engoli o vento pela máscara, novamente capaz de nomear uma experiência verdadeira.

Aprisionadas no passado junto do vento e da chuva (com o som do mar), a poeira e as vozes da infância daquela praia eram as luzes que insuflavam desejo em meu coração. Deslizando por aquelas luzes, catártico, lembrei que li nos diários de meus escritores favoritos que há múltiplos rios, caminhos e veredas para bem contornar problemas e descobrir possíveis margens ou saídas, sem jamais eliminar todas as dúvidas. Depois, sozinho, na sala cujos tacos do corredor refletiam as luzes de poucas velas provenientes dos quartos de meu filho e de minha mulher, reli o que Silvia Plath escreveu em seu diário, no dia 22/05/1958 (uma quinta feira) – entre outras coisas:

“Meu romance dificilmente terminará em amor & casamento: será uma história, como as de James, de trabalhadores e trabalho, de exploradores e explorados: de vaidade em crueldade: com um amplo repertório de mentiras e abuso num mundo lindo que apodreceu.”

E já no início da manhã, folheando os diários de Lucio Cardoso, abro um grande sorriso ao ler que em 1945, ele escreveu (assim mesmo sem uma data definida) que:

“…Cada sessão de cinema que se perdeu; cada festa onde não se foi por causa de uma simples chuva; cada doce apetitoso que não se comeu; cada fogo de artifício que não se soltou; cada namoro que se deixou de ter, cada visão desejada que não foi vista; cada beijo não trocado, cada coisa renunciada, cada caminho não feito ou não recebido; cada simpatia não realizada, – tudo há de ressuscitar para nós. … A cada hora nós erramos. Erramos porque somos ineptos e idólatras. A cada hora concebemos uma solução. Tendemos a nos agarrar a verdades que não libertam. A finesse intelectual atrapalha ainda mais que a crença bronca; porque rouba vida demais. Nunca conseguimos o que desejávamos. Nossa teimosia é vã. Ou nos enganamos num caminho particular, num enredo limitado, deixando de “ver” e sentir em nós mesmos tudo e todos, ou acabamos por nos perder. Deixar gravado o testemunho do que se ama  e se quer, do que se aspira a salvar e reter quando o oceano de rejeições inundar a terra. Até as revistas e os jornais são fonte de figuras e histórias para se guardar. Vontade de fazer uma grande coleção, para que tudo seja nosso, em bloco, e disponível a qualquer instante. É na infância que o pensamento é vida. … Tudo que se puder desejar, criar, imaginar é o reino de Deus. O que interessa é o prazer eterno, a cessação da tragédia, da chateação, a transfiguração do que tiver sido grande e humano no sofrimento. … Quem sentir as coisas que eu senti que as sinta, e que Deus o ajude, que tenha suas dores de barriga mais ou menos solitário, como eu as tive, ao invés de andar a exibi-las com muita estética a grupinhos de elite.”

Muitas vezes escrevemos despretensiosamente nos diários, porque imaginamos que nunca serão publicados.

Por isso, muitas vezes pode ser vantajoso lançar diários em contos e romances.

Nos últimos dias de dezembro do ano que passou, escrevi em meu moleskine que espero poder discutir com minha psicanalista a questão da linguagem e de sua essência – incluindo não apenas a oralidade e a escrita, mas também a linguagem visual. Eu sei que psicanalistas escutam apenas as palavras, o discurso e seus significantes, mas algo me diz que tinham que ver, além de escutar. Devo comentar com ela o texto de Heidegger abordando arte e poesia, ressaltando que é preciso resgatar a essência da linguagem para voltarmos a comunicar com efetiva qualidade, dizendo algo verdadeiro, à medida que desracionalizamos, estranhando expressões, eliminando lugares comuns.

Ocorre que naquela curta viagem de automóvel, vislumbrei uma cena de praia que persigo na vida, repetidamente, sem saber quando a vi pela primeira vez. O cenário foi redesenhado em minha mente num relâmpago.

“Respirava numa região litorânea montanhosa num dia ensolarado – azul, amarelo, verde e bege – sobre a areia da praia à sombra de coqueiros, onde ouvia ribombos da espuma do mar e via à distância a mancha escura de um pequeno cardume na água verde encimada pela espuma rosa, tudo misturado ao odor dos chapéus de sol e das esteiras de palha. No espaço privilegiado de uma infância protegida, pareço ouvir bolinhas de borracha e raquetes, num bate e volta sincrônico que me hipnotizam naquele local, onde finquei minhas raízes, junto com brisas quentes e uma multidão comportada, que se deita num paraíso bucólico. Com uma camisa listrada eu me vejo feliz dentro desta lembrança fugidia, que tento arrancar do passado a todo custo.”

Nomear vivências reconstruindo o passado confere sentidos autênticos, tornando-me o sujeito consciente de meu cárcere à margem deste mundo inaceitável (como Kafka escreveu em seu romance “O Processo”, cujo protagonista não sabia porque foi condenado). Eu costumo interagir com os outros, mas desse mundo capitalista neoliberal não posso fazer parte, totalmente sem voz, quando a maioria parece saber de tudo. “Prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.” Tudo é tão irritante que parei de procurar ouvidos na aglomeração. É por isso que escrevo; pinto; ilustro e colo. Ainda bem que não me sinto como o “muçulmano”, que é aquele sujeito no campo de concentração (Shoa) – sem forças e desnutrido –, que não compreenderá nunca mais qual será o seu verdadeiro destino. Tudo isso me fez lembrar de Kafka que reclamava em seus diários do quanto o trabalho lhe roubava seu tempo de criação literária. E o quanto isso acabava com a sua paciência. Em 15/11/1911 – tentando esboçar uma introdução para “Richard e Samuel”, ele escreveu que:

“… Certo de que tudo o que invento de antemão, ainda que munido de um bom sentimento … parece árido, equivocado, … um estorvo em relação a tudo o que o rodeia, angustiado, e sobretudo, incompleto quanto intento registrá-lo por escrito em minha escrivaninha, embora nada da invenção inicial tenha ficado esquecido. Em grande parte, … , longe do papel, só invento algo de bom em momentos de elevação. …”

Marguerite Duras foi uma escritora que promoveu pesquisas e lembrou-se dos fatos mais marcantes de sua vida em romances nos quais nos conta sua formação familiar e escolar, as suas relações sociais, as suas experiências afetivas e sexuais, num tempo em que morou com a sua mãe (uma professora francesa) e seus dois irmãos no Vietnã. Seu pai morreu cedo, deixando todos sozinhos no estrangeiro. Duras conta isso em “O Amante” e “O Amante da China do Norte”, mas também e principalmente em seu relato de não ficção, intitulado “Cadernos de Guerra e Outros Textos”.

Na maioria destas narrativas do eu, consubstanciadas em diários (nos quais poderia incluir tantos outros escritores, como Marcel Proust, John Reed, Robert Walser, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Sylvia Plath, Simone de Beauvoir, Violet Le Duc, Susan Sontag, Alice Munro, Pedro Nava, Ricardo Piglia, Thomas Bernhardt, Antônio Lobo Antunes, Lúcio Cardoso, Mário Levrero e muitos outros, ainda, numa lista de grandes autores que eu aumentaria sempre (fazendo com Georges Perec)), escritores diaristas tratam de sua própria experiência individual ou coletiva, elegendo-a como motivo mais do que sagrado para a criação literária, na maioria das vezes trabalhando em gêneros híbridos que se inclinam de encontro aos registros de auto ficção. Assim, há possíveis diários em contos e romances.

Seja no diário – narrativa em que os autores não têm controle nos registros lançados (que ocorrem ao acaso, eliminando quaisquer chances de significação posterior), portanto, sem enredo –, seja na auto ficção, um gênero no qual os escritores vão criando espécies de mitos de suas próprias identidades, escrever partindo de si é algo quase imperdoável pela “crítica” conservadora (agora inominável nestes tempos bolsonados) que elege como padrão insuperável de qualidade, os contos, as novelas e os romances.

Eu fiz mais de quatro cursos sobre o assunto antes e durante estes quase dois anos de pandemia (em módulos pequenos de uma a cinco aulas, primeiro com o professor e escritor Roberto Taddei, depois com o talentoso professor e escritor Julián Fuks, em seguida com o escritor Jacques Fux e depois, com as queridas escritoras Natália Timerman e por fim Ingrid Fagundes) e sei perfeitamente que pode haver diários em contos e romances. O contrário não é possível.

Depois de tanto procurar sobre quais diretrizes se funda a narrativa de auto ficção (bem como relatos de memória, relatos de viagens, cartas e crônicas) – não sem antes quase esgotar a maioria dos textos teóricos sobre o assunto*1, pude notar que grande parte minha produção gráfica – nos últimos dez anos –, expressa exatamente este caminho da realidade à ficção, passando exclusivamente pelo crivo da realidade e da fantasia em que estou plantado. Estes eventos pessoais criam a estrutura da narrativa, a partir da qual o passado é revisto e recriado.

A questão é que trabalho em uma linha (praticamente fundada entre os franceses por André Gidé com “Os Moedeiros Falsos” e entre nós brasileiros por Machado de Assis, com “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires”. Depois, alguns outros nomes como Cyro dos Anjos, com “O Amanuense Belmiro”, Rubem Fonseca, com “Diário de um Fescenino” e mesmo, Osman Lins, com “A Rainha dos Cárceres da Grécia”, dentre outros, trabalharam com diários imaginários (muito mais difícil, porque temos que simular o real, o casual e o fortuito)) na qual o diário a ser publicado é de ficção, inventado, ou semi inventado, a partir de recriações sempre alicerçadas no real.

Foi pensando desta maneira, preparei 83 imagens consubstanciadas em fotografias próprias, e em reprodução destas fotografias que receberam posterior tratamento de cor, além de colagens de imagens de revistas e jornais, muitos desenhos ou ainda, pinturas de minha produção pessoal. Reparem como a simples cópia de uma fotografia muda de característica – passando de um contexto realístico em preto e branco, para uma composição ficcional –, apenas com uma leve saturação de amarelo, laranja ou mesmo vermelho, ganhando verossimilhança com poucos detalhes.

Há uma pintura em que não se pode ver casinhas e laranjas ao mesmo tempo (brincando com o efeito óptico de precisar deslocar o olhar e o foco para ver ora uma coisa ora outra – insinuando não poder ter as duas coisas ao mesmo tempo), onde a região do telhado não tem todos os elementos cerâmicos. Mas ao lançar quantidades ideais de telhas, aplicadas estrategicamente aqui-ali, levo o espectador a ter a ilusão de que o plano da cobertura das casas está totalmente ocupado por telhas. E se eu fizesse exatamente isso, o plano do telhado ganharia um peso insuportável.

O mesmo ocorre junto a fotografias tratadas com lápis de cor ou pastel, conduzindo aquele fragmento do real a uma recriação que amplia o espaço e cria outro mundo, sempre a partir do anterior. Ao final, apresento imagens de folhas de cadernetas, moleskines e fichários cobrindo os espaços e tempos destes últimos dez anos, apresentando até alguns trechos de diários onde transcrevi ocorrências diárias cotidianas, para poder transformá-las no futuro.

Créditos

Nota*1: Philippe Lejeunne, Paul de Man, Myriam Ávila, Helmut Galle e Ana Cecília Olmos, Luciana Hidalgo, Diana Klinger, Brand Nicol, Paul Ricouer, Paula Sibila, Leonor Arfuch, Maria Zambrano, Elizabeth Podnicks, Alexandra Johnson, Marjorie Fleming, Suzanne Raitt, Alberto Giordano, Marcio Selligman, Rebeca Solnick, Natália Timmerman e Fabiane Secches. (texto publicado no facebook em 05/01/2022.

Os diários inventados são uma grande possibilidade ficcional. Muitos escritores brasileiros escreveram diários inventados como Machado de Assis (Memorial de Aires) e Rubem Fonseca (O Fescenino).

Créditos

Romance Luminoso, de Mário Levrero, Cia das Letras

https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535930788/o-romance-luminoso

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